top of page
biscoito de leite.png

Por: Charlotte Borges

Às margens do rio e dos seus afluentes, o vai e vem das tototós com suas diversas cores, configura o cenário do Rio Sergipe no trajeto Aracaju até Barra dos Coqueiros. É nas águas desse Sergipe de rios de memórias e patrimônios que vidas se entrelaçam cotidianamente, como os nós dados pelos popeiros ao atracar as embarcações em seu leito.

Introduzidas na região estuaria do rio Sergipe, em meados do século XX, as tototós resistem até hoje como o mais importante meio de transporte e tradição entre as localidades da Ilha de Santa Luzia e a Capital Aracaju. Esse tipo de transporte fluvial, assim como canoas, barcos e saveiros eram na época a única ligação entre os municípios e fundamentais para as atividades socioeconômicas. Moradores da Barra do Coqueiros e da atual Atalaia Nova, vinham a Aracaju, tanto para comercializar sua produção agrícola e fazer compras quanto para atividades de lazer. Em todas essas situações, as tototós possibilitaram que as pessoas cruzassem as bacias hidrográficas do Estado, garantindo-lhes a liberdade de ir e vir.

Imagem de arquivo Jornal de Sergipe Jorn
Imagens de arquivo Jornal de Sergipe Pre

Imagens de arquivo do Jornal da Cidade- Sergipe Poster da Cidade PMA

As tototós como as conhecemos hoje, são o resultado das transformações provocadas pela introdução de novas estruturas nas canoas. Como o motor de popa, cujo barulho repetitivo deu origem ao próprio nome tototó, e a cabine ampliada, que proporcionou mais conforto para os passageiros, protegendo-os do sol e da chuva. Com o desenvolvimento do comércio e o crescimento da empregabilidade local em Aracaju, o número de canoas atravessando o rio Sergipe levando e trazendo trabalhadores era expressivo. Na década de 1980, essas canoas começaram a concorrer com as lanchas maiores da empresa Sergiportos, que eram, mais rápidas, mais estruturadas e que possuíam capacidade para conduzir um número maior de passageiros. Mas a disputa não durou muito tempo. Com o término dos serviços prestados pela antiga Sergiportos, as lanchas tanto para a Barra do Coqueiros como para a Atalaia Nova foram retiradas, deixando assim o transporte fluvial apenas para as tótótós.

O professor e historiador Marcos Vinícius, morador na época da Barra dos Coqueiros vivenciou todo esse processo de mudanças e relata: “Eu tive a oportunidade de morar na Barra dos Coqueiros, mais precisamente no conjunto Prisco Viana no final da década de 1980 e início dos anos 1990. Como não existia transporte coletivo rodoviário para Aracaju, até porque não existia a Ponte Construtor João Alves, e excetuando a via fluvial, a única saída da Ilha de Santa Luzia, se dava através da rodovia estadual que liga até o município de Santo Amaro das Brotas. Dessa forma, a maneira mais rápida e eficiente para chegar à capital era atravessando o rio Sergipe. O transporte era feito não somente pelas canoas tototós, mas existia as lanchas da Sergiportos, que possuíam um horário rigoroso de saída dos atracadouros. Paralelo a essa opção, as tototós, ficavam de maneira mais disponível, quanto a horário, saindo quando completava a sua lotação. Era comum, os passageiros perceberem que a lancha demoraria mais de 10 minutos para sair, muitos se apressavam e lotavam a canoa que saia antes da lancha.”

Atualmente, com a construção da ponte construtor João Alves Filho, ligando os municípios de Aracaju-Barra, as tototós deixaram de ser as protagonistas como o único meio de transporte nesse trajeto, perdendo lugar para o transporte urbano, principalmente os ônibus. Essas mudanças geraram fortes impactos às tototós, seja no aspecto do fluxo de pessoas até a  manutenção da sua tradição sem qualquer investimento por parte dos órgãos governamentais. Assim como relata Mary Almeida, fundadora e coordenadora da Astototós (Associação de Canoeiros e Usuários das Tototós do Estado de Sergipe) “Depois da presença da ponte eu comecei a ver que isso de fato financeiramente afetou não só minha família, mas toda as outras famílias e ao ver meu pai chorando, ao ver a situação em que ele se encontrava, financeiramente e a questão também da estrutura familiar afetada eu disse pra mim que já que eu podia fazer trabalhos voluntários na minha cidade, na minha comunidade eu tinha por obrigação também lutar por aquilo que me fez chegar até onde eu cheguei.”

biscoito de leite (2).png

A associação “Astototós” vem atuando como sinônimo de resistência, com o objetivo da promoção socioambiental, cultural e econômica, busca manter viva a tradição das tototós no desenvolvimento de suas atividades. A partir de projetos e trabalhos com ONGs voltados a educação ambiental, Mary Almeida junto aos canoeiros, lutam pela valorização do ofício, buscando por espaços físicos, como a construção de um ecomuseu para a recepção de pesquisadores, alunos e turistas e a permanência física da associação: “A gente alugou um espaço, mas antes eles não tinham uma sede, a gente fazia reuniões dentro de uma embarcação, na beira do rio, muitas vezes a gente conseguia um espaço dentro da igreja Católica que sempre esteve de portas abertas para nos receber, por exemplo”, Relata Mary.

A antiga associação dos proprietários de Canoas e Transporte de passageiros e fretes de Barra dos Coqueiros, mais conhecida como Associação das Tototós, foi fundada em 18 de dezembro de 1989. Porém tinha uma estrutura bastante frágil e apresentava vários conflitos. Foi através do Projeto de Lei N° 20/2018, que a associação foi declarada de utilidade pública, o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal da Barra dos Coqueiros.

Imagem_de_plano_de_fundo_do_vídeo.jpg
biscoito de leite (2).png

De acordo com a Astototos. atualmente existem 20 embarcações em uso, divididas em duas equipes, uma por dia – realizando o transporte pelo Rio Sergipe das 5h45 até às 19h, no sábado até às 16h e no domingo até meio dia. Para além das atividades de transporte, os canoeiros utilizam as tototós nos dias de inatividade das embarcações para fazer passeios turísticos e transportar cargas de pequeno porte como uma forma de garantir um dinheiro extra.

Os canoeiros também cumprem um papel de carpinteiro na manutenção das suas próprias embarcações, elas são distintas em cores, tamanhos e modelo naval. A embarcação nomeada de Sergipe Star tem um tamanho maior das demais e cor neutra, trazida das águas do Rio São Francisco, já passou por várias modificações. Por ser um ofício transmitido de geração para geração existe  uma relação afetiva, eles conhecem as canoas pelos nomes, o ser canoeiro é considerado como um modo de vida, saber adquirido e desempenhados a partir de vivências cotidiana vinculadas à prática fluvial. Para exercer a função de popeiro, os condutores obrigatoriamente precisam ter a habilitação e registro exigido pela Capitania dos portos de Sergipe

INFOGRÁFICO I.png
Volleyball is a famous ball game sport p

Ao longo de toda sua história e apesar do seu aspecto simples e rústico, as tototós pautaram apenas um acidente que ocorreu quando a embarcação estava atracando, uma das embarcação bateu na janela da outra, levando uma pessoa a óbito. Valdemir Lima, dono de embarcação, popeiro, morador nativo há 45 anos da Barra dos Coqueiros, relata “Em termos de segurança, como o colete por exemplo, a Marinha sempre está aqui fiscalizando, tem que ter o documento da embarcação, ele vale por cinco anos e é o título da embarcação com a numeração e é uma transporte muito seguro. Eu estou aqui esse tempo todo e só teve um acidente, além de ser o único transporte que não tem relato de assalto”.

IMG_5012-2
IMG_4962-2
IMG_4907-2

A realidade dos barqueiros continua  necessitando de melhorias, tanto salarial como de benefícios previdenciários, além de maior reconhecimento e divulgação do trabalho naval dos totozeiros. A saída encontrada após a perda de espaço para os transportes terrestres, foi a redução do valor da passagem para um preço menor ao que é cobrado pelos ônibus, “A média aqui é mais de um salário, por mês. Trabalho em dias alternados, se trabalha 13 dias no mês, mas dá para se manter, com alimentação, pagar as contas. Mas para manter uma embarcação como essa não tem condições.” diz Valdemir Lima, dono de embarcação.

Apesar das exigências para navegação, os canoeiros não possuem nenhum tipo de seguro: “Olha, eu lembro que até antes da ponte eles tinham, era obrigatório, só que aí depois que se tornou um patrimônio reconhecido não existe mais um órgão que queira de fato apostar no patrimônio como algo que pudesse gerar seguro”, afirma Mary. Outra dificuldade encontrada se dá pela ausência de formação por parte dos canoeiros.

Imagem_de_plano_de_fundo_do_vídeo.jpg
biscoito de leite (4).png

Diante da fragilidade e dificuldades enfrentadas pelo ofício dos canoeiros da foz do rio Sergipe, em 2011, as tototós receberam o título de Patrimônio Cultural e Imemorial do Estado de Sergipe pelo Decreto de Lei n. 7.320/11, sancionado pelo governador do estado de Sergipe, Marcelo Déda. O reconhecimento é feito por parte da câmara de vereadores, ou de deputados e é de cunho declaratório, não havendo assim uma política pública. Contudo não há um reconhecimento das tototós por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, como um Patrimônio de cunho Nacional e Imaterial, é o que explica a historiadora representante do Iphan Flávia Gervásio:

IPHAN -
00:00 / 00:00

Salvaguardar os bens culturais relativos a modos de fazer, a formas de sociabilidade, religiosidade, relacionamentos com o meio ambiente, entre outros, exige uma abordagem especial.

Em termos práticos, isso somente é possível por meio de ações de produção de conhecimento, de documentação, de sensibilização da sociedade, de promoção e de apoio às condições sociais e materiais de existência.


The Wedding of.png

O professor e historiador Marcos Vinícius ressalta a importância da permanência da tradição: “Nós sergipanos temos algumas “coisas” e produtos que são bem “nossos”. Quando se confere um título de Patrimônio Cultural, nos remete a pensar que existe além do valor cultural e histórico, temos referências de uma época, costumes que estão intrínsecos na memória popular. Quantas histórias não passaram por cada canoa e condutores? Quantos registros no imaginário popular que a travessia proporcionou? Assim, o Patrimônio é algo que nos pertence, que nos é próprio, que tem valor inestimável, afinal remete a nossa própria identidade, dessa forma todo e qualquer investimento ainda é pouco para a manutenção dessa identidade. A preservação da história e da cultura. É importante que os governos possam investir e associar o patrimônio cultural a educação com a finalidade de formar cidadãos que valorizem e preservem enquanto um bem público.”


biscoito de leite (5).png

A ligação direta dos canoeiros com as demais atividades de bens culturais relacionadas a Barra dos Coqueiros e ao Rio Sergipe como os grupos folclórico do samba de coco, catadoras de mangaba, pescadores, traduzem um modo de vida ainda pouco conhecido. A presença do sincretismo religioso Católico é bastante presente na tradição dos canoeiros, como por exemplo as procissões fluviais da festa de Bom Jesus dos Navegantes que acontecem nos municípios de Aracaju, Laranjeiras, Nossa Senhora do Socorro, Pedra Grande. Outro festejo tradicional é o chamado “Forrótototó”, que teve sua primeira edição em 2017 onde grupos tradicionais de forró pé de serra tocam dentro das Tototós durante a travessia.  

Assim as tototós desenha-se na história como marca registrada e de fundamental importância, não somente dos moradores da Barra, mas do povo sergipano. Assim, não é mais possível falar de Aracaju e de Sergipe sem lembrar do papel fundamental cumprido pelas Tototós.


Atividades_econômicas,_celebrações_e_fes

Reportagem realizada para a disciplina de Jornalismo Digital da Universidade Federal de Sergipe, sob orientação da Prof. Dra. Messiluce da Rocha Hansen.

bottom of page